Fala, pessoal! Eu sou o Fauno e hoje vamos desvendar como Avowed, o novo RPG da Obsidian, usa ursos desfigurados, magia e escolhas morais para debater um tema que está no DNA da sua história: o colonialismo. Sim, COLONIALISMO! Aquela coisa de expandir seu império e destruir muitas famílias de outro país no processo hahaha Por trás de espadas flamejantes e feitiços épicos, esse jogo esconde críticas afiadas a impérios como o britânico, o português e até ao neocolonialismo moderno — aquele que usa corporações e acordos econômicos para sugar recursos, igual à mineração ilegal da Amazônia hoje em dia.

PREMISSA
Você é um enviado do Império Aedyr, uma superpotência mágica que chega às Terras Vivas (as Living Lands) com a missão de ‘civilizar’ a região. Só que, em vez de ajuda, traz canhões, burocracia e uma desculpa conveniente: a ‘Praga do Sonho’, uma maldição que corrói almas. Mas não se engane: essa praga é só o verniz para justificar saquear cristais de mana, do mesmo jeito que os portugueses justificaram a extração de ouro com a ‘salvação’ dos nossos indígenas brasileiros.
Essa análise vai comparar alguns eventos de Avowed com tragédias reais. Quando você saqueia uma vila virtual por recursos, está reencenando a extração da borracha que escravizou milhares na Amazônia. Quando silencia diante da opressão cultural, vira cúmplice da destruição de línguas indígenas, como o Tupi antigo
E no final, você vai ter que decidir: em Avowed, você é um herói… ou um Leopoldo II de espada, o rei belga que transformou o Congo em seu playground de horror, deixando 10 milhões de mortos?
Contexto do Mundo de Avowed
Em Avowed, você não é um herói comum. É um Godlike — um ser abençoado por um dos 11 deuses de Eora — enviado pelo Império Aedyr para ‘pacificar’ as Terras Vivas, uma região selvagem que é o ‘Velho Oeste’ de Eora. Mas não espere xerifes, cowboys e cavalos: aqui, a fronteira é feita de desertos onde a areia queima como magma, florestas onde árvores sussurram maldições, e ruínas de civilizações que o próprio Aedyr apagou da história.
O Império Aedyr não é só ‘mauzão’. É uma máquina complexa: enquanto seus missionários de Woedica impõem templos sobre santuários locais, seus mercadores extraem cristais de mana — recurso mágico raro — com a mesma ganância dos bandeirantes que escravizavam indígenas por ouro em Minas Gerais. E a cereja do caos? A Praga do Sonho, uma maldição que não só transforma pessoas em monstros, mas reescreve a geografia: rios viram sangue, montanhas ganham pulsação e aldeias inteiras são consumidas por pesadelos vivos.


Mas a genialidade está nos detalhes
Olha que foda! O Ministério das Colônias de Aedyr opera de maneira muito similar ao Conselho Ultramarino português — todas as decisões vêm de um palácio distante, ignorando a realidade local. Em uma missão, você encontra um burocrata que ordena a execução de aldeões ‘por questões sanitárias’, ecoando as ‘leis de higiene’ usadas para justificar massacres em Moçambique.
Em diários encontrados no jogo, podem ser encontrados relatos muito similares a relator de indígenas norte-americanos, centro-americanos e sul-americanos: ‘Eles trouxeram a cura? Trouxeram é a morte vestida de salvação’.
E aqui está a bomba: o jogo te dá poder divino (você é um Godlike), mas pergunta: como você usa esse poder? Para impor a ‘lei’ de Aedyr, como um Vasco da Gama místico? Ou para lutar ao lado dos oprimidos, sabendo que a libertação pode gerar novos tiranos? Em Avowed, a resposta vai definir não só o destino das Terras Vivas, mas espelhar suas próprias convicções sobre justiça e poder.
Capítulo Adicional: “O Universo de Avowed e Pillars of Eternity – Onde Tudo Começa
Antes de mergulharmos nas críticas ao colonialismo, precisamos entender onde e quando Avowed se passa. Porque sim, esse jogo é parte de um universo maior – e as raízes da dominação imperial em Eora já estavam plantadas há décadas, de acordo com a lore dos clássicos Pillars of Eternity.


1. Conexão com Pillars of Eternity: O Legado de Eora
Avowed não é um spin-off qualquer: é uma janela para o passado do universo de Eora, o mesmo de Pillars of Eternity. A ação de Avowed acorre logo após os eventos de Deadfire (o segundo jogo da série), mas não espere reviver a trama dos arquivistas ou do deus Eothas. Aqui, o foco é uma região inedita: as Terras Vivas, um ‘Velho Oeste’ mágico onde o Império Aedyr tenta fincar suas bandeiras.
Nessas terras, um fenômeno conhecido como Praga do Sonho acomete a região como uma praga ou maldição que transforma almas em monstros. Claro que a Praga não é só um mero fenômeno e desculpa narrativa. Ela é uma metáfora para doenças reais trazidas por colonizadores, como a varíola nas Américas e muitas outras doenças como o tifo e o escorbuto, com as quais os indígenas americanos nunca tinham tomado contato. Se engana quem acha que a população de indígenas foi dizimada apenas com armas de fogo. As doenças do homem branco europeu e a política de apagamento cultural indígena foram os principais motivos para a população indígena originária representar menos de 1% do total da população brasileira em 2025, segundo dados do Censo de 2022.
Pra quem jogou a saga Pillars of Eternity, as referências são sutis: estátuas de deuses esquecidos, NPCs que mencionam eventos passados… Mas para novos jogadores, basta saber: Eora é um mundo onde deuses interferem diretamente na política, e o Império Aedyr é o novo rosto da ambição colonial, assim como as ambições coloniais inglesas, espanholas, holandesas e portuguesas, tomaram conta do cenário político global dos séculos 14 e 15.
2. Mundo e Ambientação: Fronteira Sangrenta, Deuses Vivos
As Terras Vivas não são só cenário – são personagens. Imagine uma ilha com desertos escaldantes, florestas onde a luz do sol não chega, e montanhas que escondem ruínas de civilizações extintas. É nesse caldeirão que o Império Aedyr chega com sua tecnologia ‘pré-moderna’: pólvora, fornalhas e… burocracia.
Os 11 deuses de Eora ditam as regras. Woedica, a deusa da lei, é a favorita de Aedyr, mas Magran (deusa do fogo e da guerra) também tem seguidores nas Terras Vivas. Seu personagem, como Godlike, carrega marcas físicas da divindade que o abençoou – o que afeta até diálogos: NPCs podem te respeitar ou cuspir no seu rosto, dependendo de qual deus você ‘representa’.
E aqui está a genialidade da ambientação: explorar mapas semiabertos não é só achar espadas mágicas. É encontrar histórias enterradas. Uma fornalha abandonada? Pode ser resto de uma colônia fracassada de Aedyr. Um templo em ruínas? Talvez um aviso das consequências da Praga do Sonho. Tudo ecoa a violência colonial, mas de forma orgânica – sem discursos óbvios.
3. Narrativa e Temas: Pandemias e Revoltas
A Praga do Sonho é o cerne da trama. Ela não só cria monstros, mas deforma a paisagem – rios viram sangue, árvores ganham rostos. Os desenvolvedores admitiram inspiração em Annihilation (aquele filme onde a natureza se rebela) e em pandemias reais. Mas o que isso tem a ver com colonialismo? Tudo.
https://gamerant.com/avowed-interview-story-obsidian-eora-pillars-eternity-loreA praga é a desculpa perfeita para Aedyr justificar sua invasão: ‘Viemos salvá-los!’. Só que… a ‘cura’ deles envolve extrair cristais de mana e suprimir culturas locais. Parece familiar? É o mesmo que europeus fizeram nas Américas: ‘salvar’ indígenas da ‘ignorância’, enquanto roubavam ouro.
Não importa o caminho: o jogo lembra que não há heróis inocentes em território colonizado. Mas como essa narrativa de Avowed reflete padrões reais de dominação? Quando você escolhe saquear uma vila por recursos, está repetindo o que Portugal fez no Brasil? Não exatamente, mas é como diz aquele ditado: “para bom entendedor, meia palavra basta”. Uma boa narrativa é aquela que te “mostra, não conta”. Nesse aspecto, Avowed deixa muitas coisas implícitas, mas pra quem já tem o olho treinado para referências históricas e de storytelling, como eu, é impossível não perceber e reparar nas dezenas de paralelos que os roteiristas da Obsidian fizeram questão de elaborar.
Mas se vc não percebe como o universo de Avowed funciona, o jogo te faz sentir na pele, uma hora ou outra. Isso porque cada decisão nesse jogo espelha um manual de colonialismo do mundo real. De missionários impondo deuses, a burocratas se afundando em papelada para administrar vidas reais, Avowed não inventa nada – só joga na nossa cara o que a humanidade já fez e como funcionamos. Mas ousa nos perguntar: ‘Você faria diferente?’.
“Colonialismo em Avowed vs. História Real – Quando o Jogo Espelha o Pesadelo”
1. Imposição Cultural: Woedica vs. Cruz e Espada
Como estávamos falando, Avowed faz questão de jogar na nossa cara algumas situações bem curiosas que se assemelham a fatos históricos reais ocorridos durante o período de colonização global, que se iniciou no século 14.
Em Avowed, Woedica, a deusa da lei, é o martelo que Aedyr usa para esmagar as crenças das Terras Vivas. Ao ordenar a destruição de um templo sagrado dos povos que veneram espíritos da natureza, por exemplo, a história de Avowed faz uma alusão clara à catequese forçada no Brasil Colonial, onde jesuítas queimaram maracás (instrumentos sagrados indígenas) para impor o cristianismo…
No caso da Índia, como mostra a Revolta dos Sipaios, acorrida em 1857, britânicos proibiram símbolos hindus em tropas coloniais, obrigando uma assimilação cultural por meio da opressão e do trauma cultural.
2. Exploração Econômica: Cristais de Mana vs. Serra Pelada
Falando de economia, pq economia tem TUDO ver com colonialismo, os cristais de mana das Terras Vivas são o ouro de Avowed.
Assim como no ciclo da borracha, que ocorreu na Amazônia no final do século 19 e começo do século 20, onde seringueiros indígenas eram escravizados e aldeias inteiras dizimadas por doenças, a lógica de Avowed em relacionar a exploração do império Aedyr dos cristais de mana com a população local, torna impossível não traçar esse exato paralelo histórico. Acham que eu to forçando a barra? Então vão pesquisar sobre a história de Serra Pelada, onde garimpeiros morriam em buracos de lama por migalhas de ouro, enquanto elites latifundiárias enriqueciam.
(mandando a real isso rola até hoje, tá?)
3. Burocracia Imperial: O Ministério vs. Lisboa
O Ministério das Colônias de Aedyr é uma máquina de absurdos, poder, ganância e… eficiência.
Seu modus operandi, não fica muito longe dos poderes ultramarinos e coloniais portugueses e ingleses. Pra entender isso, a gente tem que voltar lá pra 1949 (nem faz tanto tempo assim, hein?)
Os territórios coloniais que pertencem hoje aos países Moçambique e Malawi, eram colônias portuguesas e inglesas, respectivamente. Como seus modelos econômicos eram voltados exclusivamente para quase total exportação (vale lembrar que Portugal chegou a decretar que 70% das colheitas de Moçambique seriam destinadas à metrópole lisboense), pouco sobrava para a população em geral e isso ocorria em toda a África, sem segredo para um estudante curioso de história, hoje em dia. O problema é que esse modelo extrativista gerou uma grande crise de alimentos, fazendo com que cerca de 100 mil pessoas se encontrassem em estado de fome gravíssima, nos terrítórios de Moçambique e Malawi em 1949. Esse evento, ficou conhecido como a Grande Fome de Nyasaland (que era o antigo nome do protetorado britânico do Malawi).
Em Avowed, nem preciso dizer que situações parecidas acontecem com essa, mas aí acho que já tô entrando demais no território dos spoilers.
Avowed faz questão de perguntar algo muito inquietante: qual a diferença entre um ‘colonizador benevolente’ e um terrorista? A resposta está nas suas escolhas. E se você ainda acha que isso é ‘apenas fantasia’, lembre-se: o Congo, colônia da Bélgica, perdeu 10 milhões de pessoas sob o rei Leopoldo II, que se autoproclamava ‘civilizador’.
Avowed não é um jogo sobre ‘bem vs. mal’. É um tribunal interativo onde você é julgado por escolhas que ecoam séculos de opressão. Cada cristal de mana saqueado, cada templo destruído, cada ordem burocrática seguida – tudo isso é um espelho do manual do colonialismo real. E a pergunta que fica é: quando você joga, você repete a história… ou a enterra?
“Resistência e Complexidade – Heróis, Vilões ou Algo Entre Eles?”
Esse papo todo não podia terminar, claro sem falarmos da resistência a um ambiente de opressão. Rebeldes. Assim como na vida real e na história da humanidade, rebeldes não são heróis que lutam contra um poder civilizatório malvadão. São sobreviventes. Não há opção ‘certa’ – só consequências.
A Revolta dos Mau-Mau, que aconteceu no Quênia em 1952 exemplifica exatamente o que eu tô querendo dizer. Até que ponto um oprimido pode aguentar calado e quando ele resolver revidar, como será essa reação? No caso da Revolta Mau Mau, os rebeldes empregaram contra os britânicos táticas brutalíssimas de guerra, como mutilações e demonstrações horríveis de violência em público, tornando-se uma das revoltas coloniais africanas mais sangrentas e do período.
A reação britânica? Mais violência, incluindo execuções públicas de insurgentes quenianos e prisão de milhares em campos de concentração modernos, o que só contribuiu para o reforço dos ideais de independência do país, de seus opressores europeus.
Se rebeldes podem ser brutais? Isso vcs vão descobrir jogando Avowed e entendendo como surge o ódio por quem restringe seu direito de ser livre à sua maneira.
Avowed Não É Um Jogo – É Um Teste de Caráter
Avowed é um espelho quebrado – cada fragmento reflete um pedaço da nossa história mais suja. Quando você saqueia uma vila por cristais de mana, está reencenando a extração de cobalto no Congo, mineral usado no seu celular, que também financia milícias e grupos mercenários privados por toda a África. Quando ignora a burocracia assassina, vira cúmplice de políticas como a ‘Operação Condor’, onde ditaduras sul-americanas, com apoio dos EUA, torturaram cerca de 60 mil pessoas.
Mas a pergunta não é se você se sente culpado. É: o que você faz com essa culpa?
Se escolheu o ‘final perfeito’, onde as Terras Vivas são livres e prósperas… saiba que isso não existe. Na vida real, até países ‘libertos’ como Gana, sofrem com dívidas coloniais e multinacionais sugando seus recursos. Vcs sabem o que tá rolando lá em Burkina-Fasso? É mais ou menos por aí, mas isso, é história para outro vídeo.
E se vc traiu os rebeldes para salvar seu personagem… você agiu como os EUA na Guerra Fria, apoiando ditadores ‘amigáveis’ contra a ‘ameaça comunista’.
Se essa análise te fez olhar para os jogos – e para o mundo – com outros olhos, não esquece de compartilhar com quem vc acha que vai ter a mesma reflexão.
E também conta pra mim nos comentários: qual decisão de Avowed mais pesou no seu coração?
Até a próxima – e lembre-se: nenhum império caiu sem luta. Nem nos games, nem na vida.