Quando pensamos nos jogos mais influentes de todos os tempos, títulos como Super Mario Bros., The Legend of Zelda: Ocarina of Time, Doom ou Final Fantasy VII são geralmente os primeiros a surgir na conversa. No entanto, há um nome que costuma ser esquecido ou subestimado nessa discussão: Shenmue. Lançado originalmente em 1999 para o saudoso Sega Dreamcast, o jogo dirigido por Yu Suzuki foi um divisor de águas silencioso. E talvez, ao olharmos com a devida perspectiva histórica, Shenmue seja o jogo mais influente de todos — mesmo que nem todos tenham percebido isso.

Capa do jogo para Dreamcast

Uma revolução sem precedentes

Para entender a influência de Shenmue, é preciso voltar ao seu contexto de criação. O projeto nasceu de forma ambiciosa, com a missão de ser um RPG 3D como nenhum outro até então. Yu Suzuki, lendário designer responsável por sucessos da Sega como Out Run e Virtua Fighter, liderava o projeto com uma visão ousada: criar um mundo vivo, onde cada pessoa tivesse rotina, onde o clima mudasse de forma dinâmica e onde o jogador pudesse explorar todos os detalhes de uma cidade realista.

Shenmue não foi só uma narrativa sobre vingança — foi uma tentativa de simular a vida com um nível de imersão nunca antes visto. O termo “FREE” (Full Reactive Eyes Entertainment), usado pela equipe de desenvolvimento, buscava descrever esse novo estilo de jogo, que integrava exploração, combate, quick time events, mini games e até trabalho temporário em um porto.

Esses elementos hoje parecem comuns. Mas em 1999? Eram uma revolução.

Pai dos mundos abertos modernos

Antes de GTA III popularizar o conceito de sandbox urbano em 2001, Shenmue já permitia que o jogador vagasse livremente pelas ruas de Yokosuka, interagindo com vendedores, crianças, trabalhadores e animais de estimação. Era possível visitar lojas, conversar com NPCs com rotinas únicas, abrir gavetas, jogar fliperama e observar a passagem do tempo em tempo real.

Esses detalhes minuciosos se tornaram o alicerce do que hoje chamamos de jogos de mundo aberto realistas. Títulos como Yakuza, The Witcher 3, Red Dead Redemption 2, Persona 5 e até Elden Ring devem parte de sua linguagem interativa a Shenmue. O design centrado em ambiente e rotina urbana, em um mundo que “respira”, nasceu ali.

Quick Time Events: Do obscuro ao padrão

Outro marco indiscutível de Shenmue é a introdução (e popularização) dos Quick Time Events, os famosos QTEs. Embora outros jogos já tivessem flertado com a ideia, foi Shenmue que a transformou em uma mecânica integrada à narrativa e ação, usada para criar sequências cinematográficas interativas. O impacto foi tamanho que, nos anos seguintes, QTEs se tornaram padrão em jogos como God of War, Resident Evil 4, Tomb Raider e Heavy Rain.

Narrativa cinematográfica e ritmo contemplativo

O jogo também foi precursor em narrativa cinematográfica. A história de Ryo Hazuki é contada com enquadramentos elaborados, dublagens completas (em inglês e japonês), e uma trilha sonora marcante que acompanha cada momento da jornada. Shenmue não tinha pressa — e foi justamente por isso que seu ritmo contemplativo causou impacto. Ao invés de estimular a ação constante, o jogo valorizava a espera, a observação e a investigação. Era preciso pegar ônibus no horário certo, esperar a loja abrir, ou encontrar alguém só no fim do expediente.

Em um tempo em que jogos ainda eram vistos como brinquedos, Shenmue ousava tratá-los como cinema interativo — um conceito que seria aprimorado anos depois por estúdios como Quantic Dream e Naughty Dog.

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Um legado invisível, mas indelével

Apesar de sua inovação, Shenmue sofreu com as expectativas comerciais. Com um orçamento estimado em mais de 70 milhões de dólares (um dos mais altos da época), o jogo não conseguiu recuperar seu investimento — em parte pela base limitada do Dreamcast, e em parte por estar à frente do seu tempo. Isso fez com que sua sequência imediata fosse marginalizada, e a série entrasse em hiato por quase duas décadas.

No entanto, seu impacto se espalhou. Desenvolvedores que hoje estão à frente de grandes franquias reconhecem Shenmue como inspiração. Os jogos da série Yakuza, desenvolvidos pela própria Sega, são herdeiros diretos de sua fórmula. O próprio GTA admitiu ter se beneficiado da ousadia de Shenmue em apresentar uma cidade viva e interativa.

Mesmo Death Stranding, com seu foco em entrega, solidão, detalhes ambientais e ritmo lento, parece beber da mesma fonte filosófica.

O jogo que andou para que outros corressem

Shenmue não foi o maior sucesso comercial. Não foi o mais popular. Mas foi, possivelmente, o mais influente. Ele moldou a linguagem dos jogos modernos em aspectos que hoje são considerados naturais. Criou uma ponte entre a narrativa cinematográfica e a interatividade plena. Deu ao mundo dos videogames uma lição sobre paciência, profundidade e imersão.

Reconhecer sua importância não é apenas um ato de nostalgia — é uma forma de dar crédito à obra que ousou sonhar grande antes de todos os outros. Shenmue não foi apenas um jogo. Foi uma visão.

E talvez, só por isso, ele mereça ser lembrado como o mais influente da história.

By Ramos Bueno

Press manager, criador de conteúdos e redator de notícias sobre universo gamer, nerd e geek. TikTok: ramosbuenojoga

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